O Bestiário nas Escolas do Norte Europeu - Parte 1
História do Brasil e do Mundo

O Bestiário nas Escolas do Norte Europeu - Parte 1


Profª Dra. Sandra Daige Antunes Corrêa Hitner

O avanço atual da cibernética produz estranhas figuras alienígenas, feras pensantes, robôs humanizados, heróis humanóides, que estão presentes em todo universo contemporâneo, desde as difundidas pelo cinema até a mais remota imaginação popular. Junto com os chamados "efeitos especiais", faz muito sucesso uma porção de figuras deformadas resultantes de aplicações científicas ou fenômenos da natureza. Tudo isso parece tão nosso, tão contemporâneo, e, no entanto, toda essa modernidade só faz dar continuidade a imagens que remontam aos primórdios de nossa história, catalogadas pelo Bestiário Europeu.

O Bestiário era uma espécie de registro no qual estavam descritos, junto com os animais da Criação, os inventados pela fantasia e aceitos pela credibilidade dos contadores de prosa e dos poetas que haviam perpetrado o espírito popular da Idade Média. Apareciam em várias obras escritas, influenciadas, sobretudo, pelo consagrado Livro das Maravilhas de Jean de Mandeville,[*1] pioneiro na revisão da fauna fabulosa, híbrida e exótica.


Bestiários
A) Figura do bestiário inesperado no Livro das Maravilhas de Mandeville. Aqui um exemplo de raças humanas muito estranhas. Segundo a descrição do autor: "besta monstruosa produzida pelo casamento do touro com asno. Tem a cabeça de um asno e corpo de homem. Parece falar, mas não é capaz de imitar a voz humana."
MAETERLINCK, L. Le Genre Satirique dans la Peinture Flamande. Gand: 1903, p. 158, fig. 124.

B) Animal com cabeça de demônio que morde o próprio rabo, que chega à boca perpassando a orelha. Seu corpo tem as vértebras aparentes.

C) Animal com cabeça humana, cabelos compridos, de quatro patas rachadas e rabo preso numa trança.

D) Animal cujas patas são membros humanos: atrás, pernas e pés; na frente, braços e mãos.

E) Animal conhecido como "Monge Marinho", com cabeça humana, cercada por um capuz de monge e corpo de um grande peixe. Figura no livro de Albert de Bollstadt, De natura animalium, com o nome de pisce monachi habitu (ver nota 1).
MAETERLINCK, L. Le Genre Satirique dans la Peinture Flamande. Gand: 1903, p. 161, fig. 133; 134; 135; 136.

Desde a época merovíngia (V - VIII d.C.), o Bestiário tomou conta do imaginário ocidental trazendo fábulas, mitologias e as teogonias mais diversas. O vocabulário bárbaro, franco, visigodo e outros tantos, também foram fontes abundantes de invenções análogas, trazendo fauna extravagante e legendária. Os primitivos desenhos de cavernas, representações de rituais totêmicos, pinturas rupestres e o imaginário religioso do Oriente, contribuíam com a maior parte dos monstros medievais mais conhecidos, tais como os dragões e as quimeras. Mas é realmente o Apocalipse de São João a fonte mais espetacular usada pelo cristianismo desde o século XI, véspera da chegada do ano mil, com todo o terror que se apostava no suposto fim do mundo. A partir daí iniciam-se as inúmeras versões a respeito das revelações de São João, e a imaginação popular se rivalizou na fertilidade de compô-las, e a arte, na força de traduzi-las, de ilustrá-las.


"O Som da Segunda Trombeta. Montanha em Chamas é lançada no mar." Apocalipse Normando, século XIV, ca 1320, Tempera e folha de ouro em pergaminho (12 ½ x 9 polegadas), The Cloisters Collection, 1968, (68.174, folio 13 recto).

Ao Apocalipse juntam-se outras passagens da Escritura, na qual bons e maus entram em ação. Satã e outros demônios que se multiplicam são mostrados em seu aspecto terrível e imundo, principalmente nas Iluminuras, miniaturas e ilustrações marginais. Assim, as visões apocalípticas não abdicam do poder que exercem sobre o espírito humano, seguindo até a Alta Idade Média, e a tradição do surreal, do fantástico, agregada à alma religiosa, só se interrompe no momento em que a devoção se faz mais íntima, mais individual e mais terna.

A mitologia das águas, vinda dos países germânicos, foi muito próspera até meados do século XVI. A mistura dos componentes desta mitologia e de outras espécies contidas no Bestiário fez com que os poetas artistas e escultores medievais inspirassem suas concepções e variassem seus protótipos.

Sereia. Escultura eclesiástica na Catedral de Bâle. CAHIER, P.CH. Nouveaux Mélanges d'Archéologie d´Histoire et de Littérature. Curiosités Mystérieuses. Paris, Librairie de Firmin in Didot Freres, fils et C: 1874, p.142, fig C.

Quanto às narrativas dos viajantes, estas se superaram em audácia na descrição dos bestiários, e pode-se dizer que até hoje é vista como uma das mais espantosas criações que o espírito humano produziu em termos de imagem durante toda a Idade Média.

A) Chest le livre de toutes les keures de la Vile d'Ypre. Sec. XIV.
A Trindade está representada por uma personagem com pernas longas e peludas, tendo na mão uma adaga e na outra um objeto redondo que parece um pequeno escudo. Sobre um pescoço desmesurado, vê-se reunidas três cabeças sob uma mesma coroa. As faces se dispõem de forma que os dois olhos da figura são vistos de perfil e um frontal. MAETERLINCK, L. Le Genre Satirique dans la Peinture Flamande. Gand: 1903, p. 65, fig. 53.

B) Bible du Musée Britannique Bibliographica. Londres, 1900, part VII, p.394.
Monge com cara de papagaio exercendo sua eloqüência diante de um bispo com o rosto de macaco que o abençoa, enquanto que ao redor deles estão seres bizarros representando, talvez, suas ovelhas. MAETERLINCK, L. Le Genre Satirique dans la Peinture Flamande. Gand: 1903, p. 141, fig. 117.

C) A figura está contida no manuscrito de Ypres intitulado "Aqui está o livro de todas as coisas da vila de Ypre". Faz forte referência à religiosidade da região. MAETERLINCK, L. Le Genre Satirique dans la Peinture Flamande. Gand: 1903, p. 146, fig. 121.

D) Na figura vemos uma ave portando sua família dentro de um cesto pendurado nas costas e seguido por uma forma monstruosa constituída de elementos bizarros e fantásticos. Manuscrit n.103 de la Bibliotèque de Cambrai. MAETERLINCK, L. Le Genre Satirique dans la Peinture Flamande. Gand: 1903, p. 75, fig. 69.


Baseado em um outro Livro das Maravilhas,[*2] foram elaboradas as Iluminuras de Jean de Berry, nos primeiros anos do século XV, onde se vêem combates de seres monstruosos e diversos dragões voadores asiáticos, provavelmente inspirados nas descrições fantasiosas de Marco Polo (1254-1323). Este mesmo Livro da Maravilhas sugere a existência de raças humanas monstruosas, como homens de orelhas vastas, ou, imagens ilustradas sob um paisagismo mostrando o Etna, com a aparição de dragões-serpentes que devoravam as crianças ?nascidas do mal?, entre outras coisas.


Revista HISTÓRICA - Arquivo Público do Estado de São Paulo





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