História das Idéias
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História das Idéias


A História das Idéias é um domínio que conquistou sua perenidade, no quadro de alternativas historiográficas, desde princípios do século XX. Passou por variações no que se refere às concepções das diversas gerações de historiadores das idéias, e conheceu momentos de maior ou menor efervescência no debate historiográfico e no mercado editorial, mas sem sombra de dúvida conquistou um lugar bastante privilegiado no Campo da História. No decorrer século XX, a historiografia pôde assistir ao desenrolar de uma rica trajetória que parece ter partido de uma História das Idéias ainda desencarnada de um contexto social – e que atinge a sua proeminência entre as décadas de 1940 e 1950 – até se chegar a uma verdadeira História Social das Idéias, na qual se mostra tarefa primordial do historiador compreender e constituir um contexto social adequado antes de se tornar íntimo das idéias que pretende examinar.


Nosso objetivo, neste pequeno texto de apresentação para esta modalidade historiográfica, não será o de recuperar na sua inteireza a complexa trajetória deste campo histórico, nem o de pontuá-la com exemplos exaustivos, mas sim o de vislumbrar os diálogos deste domínio que é chamado de História das Idéias com outros campos históricos – sejam eles dimensões, abordagens ou domínios históricos. Naturalmente que, dada a natureza dos seus objetos, a História das Idéias sintoniza francamente ou com a História Cultural, ou com a História Política, sendo estes os principais campos históricos que se colocam aqui em diálogo (o que naturalmente não exclui ainda a possibilidade de uma História das Idéias Econômicas). Às vezes esse diálogo é tão intenso que certos setores da História das Idéias dão mesmo a impressão de serem domínios que se desdobram destas dimensões que são habitualmente denominadas História Cultural e História Política.

Para o caso dos diálogos com a História Política, basta pensar nos trabalhos que investigam mais diretamente as idéias políticas, entre outros. Um diálogo mais intenso com a História Cultural ou com a História Política, ou com ambas, aparece bem explicitamente no primeiro dos limiares possíveis para a História das Idéias: aquele em que são examinadas as idéias relacionadas ao pensamento sistematizado de indivíduos específicos (por exemplo, os tratados filosóficos, as teorias políticas escritas por grandes ou pequenos pensadores políticos, ou as concepções estéticas dos artistas e literatos de diversos tipos e níveis). O mesmo ocorre quando a História das Idéias volta-se para o estudo de movimentos literários e filosóficos tratando-os como tendências que abrangem grupos mais amplos de pensadores (o Verismo na Literatura, ou o Iluminismo na política) e também quando são examinadas as flutuações de pensamento ou opinião em torno de idéias mais específicas como a “república”, a “democracia”, a “liberdade” (ou quaisquer outras). Até este limiar, tem-se um domínio que muitos preferem também chamar de História Intelectual (por exemplo DARNTON, 1990: 175-197).

Prosseguindo em seu campo de possibilidades, no momento em que passa a investir em uma preocupação mais sistemática de examinar as ideologias e a difusão de idéias, a História das Idéias começa a se interconectar não apenas com a História Cultural como também com a História Social em seu sentido mais stricto. Muitos preferem falar aqui de algo mais específico como uma História Social das Idéias, mas é importante ressaltar que – se estivermos empregando aquele sentido mais amplo de “História Social” onde toda História nos dias de hoje é uma “história social” – teremos por força de considerar que toda boa história das idéias, tal como a entende a moderna historiografia profissional, é uma História Social das Idéias. A propósito disto, é bom ressaltar que, nos dias de hoje – mesmo quando examina as idéias estéticas de um artista ou literato – é muito raro que algum historiador profissional se proponha a empreender aquele já mencionado tipo de História das Idéias que as concebe desencarnadas de seu contexto social, tal como o fizeram muitos historiadores na primeira metade do século XX.

A partir do limiar em que o Historiador das Idéias avança pela investigação de idéias que já se apresentam desencarnadas de autoria – ou porque estão mergulhadas na chamada cultura popular, ou porque se referem à coletividade em sentido mais amplo – sua prática historiográfica começa a se inserir em um profícuo diálogo com aqueles setores da História Cultural que investigam as visões de mundo, representações e expressões coletivas. Também aqui, na medida em que estas idéias começam a tocar em algo como as mentalidades ou o “inconsciente coletivo”, poderemos começar a vislumbrar os diálogos da História das Idéias com dimensões como a História das Mentalidades ou como a Psico-História.

Um esquema complexo poderá ajudar a apreender o campo das possibilidades temáticas pertinentes com a História das Idéias:









Quadro 1: Âmbitos de estudos pertinentes à História das Idéias (ver o esquema no artigo em referência)


Podemos situar esquematicamente os diversos objetos de interesse antes citados. Da esquerda para a direita – sugerindo uma direção do mais concreto e singular ao âmbito mais coletivo – teríamos os estudos de idéias específicas, no sentido transversal . Pode-se estudar as variações na percepção das idéias de Igualdade ou Liberdade, por exemplo, ou ainda relações entre duas ou mais idéias, como seria o caso de um estudo relacionando as relações entre os conceitos de ‘igualdade’ e ‘diferença’. Ao mesmo tempo, pode-se examinar tanto estas idéias em um contexto específico como percorrendo vários contextos históricos (o que irá requerer uma abordagem comparativa), da mesma forma em que também será possível examiná-las nos âmbitos do intratexto e do intertexto. Sobre a análise intratextual e intertextual das idéias, num caso o historiador das idéias estará trabalhando com textos singulares e específicos, e no outro caso estará examinando dois ou mais textos em relação intertextual. Em ambas as situações, recairemos em um estudo dos discursos para o qual o historiador das idéias poderá se valer de diversificados métodos que vão desde as técnicas de análise de discurso até as abordagens semióticas e lingüísticas destinadas a captar a significação estrutural dos textos. No esquema proposto, assinalamos campos separados para o estudo das idéias em si mesmas e para os estudos em que estas idéias estarão sendo analisadas em articulação às expressões culturais que as animam – como por exemplo o estudo de uma idéia em um texto literário ou ensaístico específico, em uma obra dramatúrgica, em um ciclo de canções, e assim por diante.

Das idéias tomadas singularmente, passamos em seguida aos sistemas de pensamento mais amplos – aqueles que se verificam ao nível do ‘pensamento sistematizado’ de um autor, e aqueles que já correspondem aos grandes movimentos – tudo isto se abrindo a possibilidades de abordagens relacionadas às idéias políticas, filosóficas, estéticas ou científicas . Em um nível maior de abrangência, poderiam ser citadas inúmeras obras que buscam trazer dentro de algum contexto específico um panorama de idéias relacionadas a uma determinada dimensão (política, filosófica, estética), como fez Quentin Skinner – um dos mais destacados historiadores das idéias – para o estudo das idéias políticas (SKINNER, 1996). O estudo dos grandes paradigmas científicos, na interconexão da História das Idéias com o domínio da História das Ciências – e também no seu diálogo interdisciplinar com a Filosofia da Ciência – vem a seguir. Para este caso, é relevante mencionar contribuições que vão das análises do “paradigma científico” em sentido mais amplo (Gaston Bachelar, Thomas Khun) aos paradigmas disciplinares, jurídicos, normativos, repressivos, tal como nos oferece em diversas de suas obras Michel Foucault Entre os estudos sobre as idéias inseridas em campos disciplinares específicos, podem ser citados, por exemplo, os próprios estudos de historiografia onde são discutidas as diversas idéias de história, seja no âmbito da produção específica de um autor ou no âmbito de correntes historiográficas mais amplas – cumprindo notar que existem também os estudos que investigam a interação entre as idéias historiográficas e os estilos narrativos.

O campo dedicado ao estudo das Ideologias e da difusão de idéias, bem como o campo seguinte, já referido às idéias coletivas de longa duração – mas também às idéias que circulam em articulação a todo um âmbito de práticas culturais que escapam ao universo da cultura letrada – já começam a posicionar a História das Idéias diante de possíveis diálogos com a História das Mentalidades, que é segundo nossa classificação uma ‘dimensão histórica’. A História das Mentalidades, por outro lado, não deve ser confundida com a História das Idéias, ainda que entre elas haja uma possibilidade de intersecção – mais especificamente nas proximidades do limiar que assinala o âmbito dos inconscientes coletivos. Na verdade, a História das Mentalidades também se abre para possibilidades que vão muito além do domínio da História das Idéias, particularmente nas suas investigações relativas aos modos de pensar e de sentir no sentido mais abstrato , bem como na possibilidade de utilizar fontes seriais para verificar as lentas variações históricas em certos padrões mentais. Ao mesmo tempo, tal como já vimos, a maior parte dos estudos ambientados na História das Idéias relaciona-se a idéias que se concretizam de alguma forma em discursos, sistemas de pensamento, sistemas normativos, paradigmas interdisciplinares, e movimentos políticos ou de qualquer outra ordem.

Com relação às abordagens possíveis aos historiadores das idéias – aos seus métodos e fontes históricas possíveis – são empregadas as mais diversas abordagens, indo das variadas possibilidades de análise do discurso aos variados aportes trazidos pelos desenvolvimentos da Lingüística e da Semiótica. Mas um giro metodológico fundamental, certamente, terá sido aquele que – nos anos 1970 – relegou ao passado da historiografia a História das Idéias descarnada e descontextualizada que ainda podia ser vista nos anos 1940 e 1950. Foi com os “contextualistas” ingleses – sobretudo com os trabalhos de História das Idéias Políticas desenvolvidos por Quentin Skinner, John Dunn e John Pocock – que surge a proposta de que as idéias deveriam ser sempre e necessariamente relacionadas diretamente aos seus contextos de enunciação, uma vez que os ambientes históricos e culturais sempre influenciam extraordinariamente a escolha das questões a serem estudadas e, sobretudo, a formatação da própria linguagem mais específica dentro da qual um debate de idéias se realiza.

Desta maneira, seria tarefa primordial do historiador das idéias trazer à luz a linguagem original de um determinado circuito de idéias – evitando o anacronismo e aprofundando-se na adequada compreensão de suas sutilezas de significação – impondo deste modo a necessidade de recriar a temporalidade e o contexto inerente à própria obra. Trata-se, assim, para nos atermos ainda ao caso dos estudos sobre as idéias políticas, de ultrapassar a perspectiva intemporal que às vezes pode ser notada nas obras de historiadores das idéias e cientistas políticos das décadas anteriores, como ocorre por exemplo com as obras de Hannah Arendt. Ressalte-se ainda que, para o novo padrão de História das Idéias consolidado a partir dos contextualistas ingleses, seria importante não apenas reconstituir uma adequada relação entre texto e contexto como também situar a análise dentro de uma perspectiva de que as estruturas lingüísticas são fundamentais para a construção do pensamento de qualquer sujeito histórico – o que, portanto, coloca o historiador das idéias diante do desafio de que não é possível compreender uma idéia sem a plena consciência do momentum lingüístico dentro do qual esta idéia foi formulada.

Não menos importante para o historiador das idéias é perceber e dar a perceber a rede dentro da qual está inserido determinado autor “produtor de idéias” – investigando dentro desta rede tanto as influências que o autor recebe como a recepção de suas idéias pelos seus diversos contemporâneos. Importante examinar, ainda, os diálogos do “produtor de idéias” com toda uma rede intertextual que remonta à tradição dentro da qual seu pensamento se inscreve ou que, também de modo contrário, o contrasta com as tradições contra as quais as idéias do autor estabelecem uma relação de ruptura.

Em que pese a importância dos aportes metodológicos oferecidos pela corrente contextualista à História das Idéias, também não deixaram de ser criticados os exageros da crença de que seria rigorosamente possível recuperar o sentido original de uma obra, particularmente chamando-se atenção para o fato de que a interpretação dos textos e idéias de uma época não deixam de ser guiadas em alguma instância pelos valores do presente do próprio historiador que empreende a análise. Desta maneira, pairando criticamente entre a antiga ilusão de neutralidade e o permanente estado de alerta diante dos perigos do anacronismo, o historiador das idéias deveria se habilitar a trabalhar concedendo um espaço às vozes do passado sem pretender sufocar inutilmente a sua própria voz. Ao mesmo tempo, entre as impossibilidades de um mais-que-perfeito “contextualismo” e as pretensões de um “internalismo” que investe nas possibilidades de buscar exclusivamente dentro de um texto os seus significados – geralmente à luz das metodologias semióticas de origem estruturalista – o historiador das idéias deve fazer as suas escolhas possíveis.

A História das Idéias, enfim, tem se revelado um dos mais produtivos domínios historiográficos, desenvolvendo importantes diálogos com dimensões historiográficas como a História Cultural, a História Social, a História das Mentalidades e a História Política, e também estabelecendo as suas conexões com inúmeros domínios historiográficos que vão da História das Ciências à História da Literatura, além de abrigar as mais diversas abordagens disponíveis para uma análise de suas fontes e contextos históricos. Dentro deste rico quadro de diálogos intradisciplinares e interdisciplinares, o seu interesse tende a se renovar incorporando os demais progressos e novidades que se dão no seio da historiografia e das demais ciências humanas.

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Leia o artigo completo em:  http://ning.it/gRqLEP
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[BARROS, José D'Assunção. "História das Idéias – em torno de um domínio historiográfico” in Revista Locus – Revista do Departamento de História da Universidade Federal de Juiz de Fora, UFJF. ISSN: 1413-3024. Vol. 13, n°1, 2007, p.41-64]
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Referências:

BACHELAR, Gaston Um Novo Paradigma Científico. São Paulo: Nova Cultural, 1998.


BARROS, José. O Campo da História – Especialidades e Abordagens. Petrópolis: Vozes, 2004.

DARTON, Robert. “História Intelectual e Cultural” In O Beijo de Lamourette. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. p.175-197.

DUNN, John. The political thought of John Locke, Cambridge: 1969.

FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do Saber. Petrópolis: Vozes, 1972.

KHUN, Thomas. A Estrutura das Revoluções Científicas. São Paulo: Perspectiva, 1988.

POCOCK, John. The machiavellian moment: florentine political thought and the Atlantic republican tradition. Princeton: 1975.

SKINNER, Quentin. As Fundações do Pensamento Político Moderno, São Paulo: Companhia das Letras, 1996.




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