Verdade e imaginação são os compromissos do historiador e do escritor, respectivamente; muitas vezes suas fronteiras tênues ocasionam equívocos para ambos.
por Júlio Pimentel Pinto
A história, disse Machado de Assis, é "volúvel, com caprichos de dama elegante". Pois há algum tempo essa dama elegante vive um dilema: como se deixar levar a outros caminhos sem perder o próprio? Será que, se a história aceitar seu lado volúvel e renovar parcerias, o rumo não fica mais claro?
Nenhuma parceira foi mais constante para a história, nos últimos 20 e poucos séculos, que a ficção. Talvez seja por isso que tantos historiadores a vêm buscando. Tornou-se comum ouvir que alguém agora "trabalha com literatura". Ou ser procurado por um aluno que pretende fazer um projeto de pesquisa com a literatura como "fonte".
Isso é bom, se pensarmos que mostra um rompimento de velhos vícios que, sob o manto do cientificismo, preservavam uma história hostil à renovação, uma disciplina mais preocupada com seus limites do que com a chance de extrapolá-los. Mas incomoda perceber uma certa banalização. Quase sempre, quando se fala em "literatura como fonte", pretende-se fazer leitura rasa do texto ficcional: ver como um determinado ficcionista "retratou" sua época ou que preocupações ideológicas o moveram ou, ainda, extrair informações sobre o período.
E nessa toada a história e a ficção vazam pelo ralo. Afinal, não há garantia de que o "retrato" de uma época surja, no tecido ficcional, da representação direta. Já o desvendamento ideológico dificilmente rende algo além de matéria-prima para a montagem de listas de livros proibidos segundo o partido "x" ou o grupelho "y".
Tampouco é possível confiar nas informações de uma obra ficcional; existem documentos melhores para construir um painel histórico. Aqui também há um exemplo interessante. Tomás Eloy Martínez, autor de romances históricos, conta que um importante jornal argentino construiu uma cronologia dos itinerários do cadáver de Evita Perón a partir de informações de seu romance Santa Evita. Só que estes eram inventadas...
A questão é que, desde Aristóteles, história e ficção se avizinham, mas os compromissos de uma e outra são distintos. Da ficção, se espera o uso sistemático da imaginação, e, no caso do romance, em geral um compromisso com a verossimilhança; da história, se pretende a verdade. Não chegaremos a ela, mas podemos pleitear uma verdade possível, a que a documentação e os dados conhecidos permitem. Verdade consensual, dirão alguns; linha do horizonte, dirão outros.
Não confundamos, portanto, história e ficção, nem esperemos que uma sirva à outra. Na fronteira porosa (e ocasionalmente indiscernível), há mais dúvida do que luz. Penetremos com cuidado nesse reino de sombras. E percebamos que ficção e história constroem mecanismos de alusão recíproca. Que nenhuma obra ficcional ignora seu tempo, mas ele não aparece necessariamente de forma clara. A história é ambiente, é oblíqua. O método de referência é quase sempre alusivo e inúmeras vezes enigmático. Porque, de resto, a história não é só volúvel e caprichosa. Também é incerta, como a ficção.
Júlio Pimentel Pinto é professor no departamento de História da Universidade de São Paulo e autor, entre outros, de A leitura e seus lugares (2004, Estação Liberdade.
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