Novos estudos acabam de vez com o mito de que a "sexualidade promíscua" dos escravos teria sido herdada pelos brasileiros
Sheila de Castro Faria
A grande maioria dos estudiosos, há algum tempo atrás, acharia um absurdo a simples hipótese de que os escravos pudessem ter acesso à constituição de família. Diversos intelectuais brasileiros, desde o século 19, atribuíram costumes "desregrados", "imorais" ou qualidades similares à vida afetiva, sexual e reprodutiva dos
negros. "As pretas possuem, em geral, filhos de dois ou três homens diferentes", diria Tschudi, um viajante que esteve no Brasil, no século 19. Jean Baptiste Debret escreveu que " tem-se por hábito, nas grandes propriedades, reservar uma negra para cada quatro homens". Charles Ribeyrolles, em meados do mesmo século, tinha certeza de que na habitação do escravo não havia "famílias, apenas ninhadas".
Impressões similares de viajantes e cronistas que estiveram no Brasil ainda durante o período escravista são inúmeras. Com base nesses relatos, vários pesquisadores afirmaram que os escravos eram promíscuos e que não era comum a constituição de família entre eles. Muitos atribuíram à origem africana a causa do desregramento social das senzalas.
Durante as décadas de 1960 e 70, os sociólogos da denominada "Escola sociológica paulista", tendo à frente o professor Florestan Fernandes, modificaram os estudos sobre a escravidão e enfrentaram os fortes preconceitos raciais da sociedade brasileira. O principal objeto de combate foi ao argumento de que os negros eram uma "raça" inferior, portanto incapaz de competir com os brancos em igualdade de condições.
Gilberto Freyre e Caio Prado Júnior contestaram, anteriormente, este argumento, mas foram os sociólogos paulistas que se esforçaram com vigor em retirar da "raça" a justificativa pela má inserção do negro na sociedade livre - o problema não seria decorrente dos "negros", mas do violento regime escravista a que foram obrigados a se sujeitar.
O pressuposto básico era o de que os negros tiveram sua humanidade soterrada pelo regime escravista. Como mercadoria, agiam como tal, ou seja, passivamente - transformaram-se em uma "coisa". Concluíram, portanto, que, enquanto "coisa", lhes foi negado o acesso à mais elementar organização humana - a família. Daí o
comportamento "patológico" e "anômico" do negro até mesmo no pós-abolição, não de herança africana, mas do padrão da sexualidade "promíscua" e "desregrada" da escravidão. Ressalte-se que estes estudiosos tiveram nos viajantes e cronistas a fonte maior para corroborar seus argumentos.
Na década de 1970, o historiador Robert Slenes foi um dos primeiros a questionar a ausência ou a "patologia" da família escrava no Brasil. Nos estudos que passou a desenvolver, com fontes demográficas - bastante diferentes, portanto, das utilizadas por aqueles pesquisadores ? encontrou evidências incontestáveis de que a família escrava (muitas vezes constituída sob as bênçãos da Igreja Católica) era não só a regra como extremamente importante para a reprodução de identidades culturais africanas, mesmo no interior
do violento regime escravista.
A coisificação do escravo também foi questionada. Os negros, mesmo como escravos, foram homens ativos e agentes de sua própria história. Reelaboraram estrategicamente suas condições de vida de acordo com códigos oriundos de suas culturas de origem e das novas conjunturas que se lhes apresentavam numa
sociedade escravista. Tendo-se como pressuposto básico a humanidade do escravo e a existência da família, parte-se, agora, para o conhecimento de novos aspectos sobre suas vidas.
Mais uma vez foi o historiador Robert Slenes quem, pioneira e profundamente, "entrou" nas cabanas dos escravos. Seu belo livro, Na Senzala, uma flor: esperanças e recordações na formação da família escrava a, foi publicado em 1999, mas há anos é conhecido do público acadêmico através de cópias amplamente
divulgadas pelos especialistas. Nele, Slenes nos mostra como, através do estudo da família escrava, foi possível resgatar do cativeiro identidades criadas através de "recordações africanas", mas com "esperanças escravas".
"Cabana", "habitação de negro" e "senzala" são nomes com que eram conhecidos os lugares em que os escravos habitavam. Muitos viviam em senzalas coletivas ou nas mesmas casas dos proprietários, mas era comum os escravos casados construírem uma casa separada do resto da escravaria. Era-lhes possível, inclusive, ter acesso a um pedaço de terra para plantar alimentos de sua escolha, cujos frutos seriam de
sua propriedade. As casas eram pequenas, baixas, não tinham janelas e, dentro delas, um fogo sempre aceso surpreendia os observadores estrangeiros que deste "estranho" hábito deixaram relato. Robert Slenes buscou a explicação para tais escolhas e surpreendeu ao demonstrar que todas diziam respeito aos costumes africanos.
Também na África Central, de onde veio o maior contingente negro para o Brasil, as casas eram pequenas, baixas e sem janelas. Quanto ao fogo, sempre aceso, argumentou que ele representava, simbolicamente, como na África, a ligação daquele "lar" com os "lares" ancestrais - o mundo dos mortos. Concluiu, portanto, que a família escrava tinha condições de reproduzir de alguma forma o culto à "família linhagem", possibilidade
terminantemente negada por estudiosos anteriores.
Durante os últimos 20 anos, inúmeros estudos sobre família escrava foram realizados. Hoje, nos meios acadêmicos, seria absurdo se questionar a existência da família como instituição presente e importante no cativeiro, mesmo que nem todos a ela tivessem acesso. O que há, certamente, são diferentes interpretações sobre esta família e sua inserção no mundo escravista.
No processo de transformação de cativo em escravo, o estabelecimento de relações parentais serviria para estabelecer a paz entre eles, renda administrada pelos senhores para a manutenção do regime escravista. A família enraíza, cria vínculos, pacifica, segundo os autores. Mas era uma paz relativa. Realizadas majoritariamente entre elementos de mesma origem étnica, contribuíam para formar aliados e manter um
estado de guerra, principalmente com a introdução freqüente de novos "estrangeiros" a serem tornados parentes.
A escravidão, portanto, dependia da administração, pelos senhores, do equilíbrio dos dois extremos: parentes e estrangeiros. Para Robert Slenes, ao contrário, a família escrava não foi responsável pela manutenção do escravismo. Foi uma ameaça a ele. A família escrava era uma entre várias instâncias culturais que ajudaram na
formação de uma comunidade escrava em oposição aos senhores, apesar das diferentes origens étnicas dos cativos.
Os debates historiográficos, partindo desse nível de análise, representam um salto qualitativo importante para o conhecimento da multiétnica cultura escrava. Em termos políticos, recuperouse a dignidade humana do homem negro tornado escravo, fator que expressa um respeito profundo pelas origens africanas da maior parte do povo
brasileiro.
Sheila de Castro Faria é professora Doutora em História da UFF, autora de A colônia em movimento: fortuna e família no cotidiano colonial (Nova Fronteira)
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